mulheres, mães e os herdeiros de Napoleão

Detalhe de A Coroação de Napoleão, de Jacques-Louis David.

Aproveitei meu aniversário para finalmente assistir a Napoleão, dirigido por Ridley Scott e estrelado por Joaquin Phoenix e Vanessa Kirby. O filme tem recebido muitas críticas principalmente pelas suas imprecisões históricas (e pelo posicionamento do diretor frente aos apontamentos de historiadores) e pela sua visão de mundo bastante conservadorae e que deixa de lado importantes eventos, como a relação de Napoleão com a escravidão nas colônias francesas. Pessoalmente, fiquei um pouco incomodada com a forma unidimensional utilizada para retratar uma figura histórica tão complexa, oscilando entre apático e imbecil, e a falta de clareza na motivação, seja do Napoleão para as suas ações, quanto do diretor quanto ao propósito do filme.

Preciso dizer, no entanto, que não detestei o filme. Na verdade, gostei dele, especialmente pelas discussões que pode gerar. Primeiramente pela fotografia. As cenas são belíssimas e acompanhadas de boa música (Dawn, de Orgulho e Preconceito, foi uma escolha um tanto estranha para Napoleão e Josefina, mas é perdoável), há um verdadeiro compromisso com a estética, até mesmo nas cenas de batalhas. A cena da coroação, reproduzindo o famoso quadro de Jacques-Louis David é simplesmente formidável. Mas o que me fez ter uma impressão positiva é que ele insinua em diversos momentos a ideia de que a dinâmica do Estado, das guerras, da economia estão intrinsecamente ligados às dinâmicas da vida privada. Narrado parcialmente pelas cartas do general-cônsul-imperador para Josefina de Beauharnais, sua primeira esposa, temos um tom bastante íntimo para uma obra que parece gostar de mostrar cavalos explodindo e pessoas degoladas. Os momentos escolhidos, o primeiro encontro entre os dois, o casamento, o sexo, o ciúmes, a infertilidade, o divórcio são batalhas que se alternam com Toulon, Austerlitz, Borodino, Waterloo.

Há uma cena bastante interessante na qual os dois discutem sobre ela não ser capaz de dar, a ele e à França, um herdeiro. Ao contrário do que seria esperado, a discussão não decorre em um espaço privado. Ela é realizada à mesa, com a família e outras pessoas presentes, deixando bastante claro que sexo, reprodução e filhos são um assunto público. E é possível pensar neste como elemento de ligação com o período pré-revolucionário, já que Maria Antonieta (cuja execução não foi acompanhada por Napoleão, nem tinha os cabelos longos neste momento, ao contrário do que o filme mostra) também precisou lidar com a pressão para gestar um herdeiro – só que no caso dela a dificuldade era de Luís XVI em consumar o casamento e não de uma infertilidade.

As historiadoras Yvonne Knibiehlher e Catherine Fouquet em seu livro A Histórias das mães da Idade Média aos nossos dias, contam que as referências sobre o papel da mulher para Napoleão se baseavam muito em sua mãe, Maria Letícia Ramolino, que se casou aos quatorze anos, foi viúva aos trinta e cinco e deu à luz a treze filhos (dos quais cinco morreram ainda na infância). Ao encontrar-se com a sua necessidade de ter uma população numerosa para que pudesse recrutar soldados, não é surpresa que ele exaltasse e incentivasse a procriação. Isso produziu resultados, como a criação da primeira cátedra de obstetrícia, a organização do treinamento de parteiras em hospitais e claro, o Código Civil. Neste documento fica muito claro o papel da mulher e da mãe pensado no período: a mulher é submissa ao homem (pai, irmão ou marido), as crianças pertencem aos pais (e não às mães) e à Nação. O adultério é passível de prisão e não existem direitos para gestantes e mães solteiras. Além disso, não há qualquer forma de reconhecimento de paternidade fora do casamento para não causar problemas quanto às sucessões.

Dando continuidade à narrativa das fronteiras artificiais (e em disputa) entre público e privado, teria sido um contraste interessante mostrar o que foi a atuação política de Napoleão em comparação a sua vida pessoal: Josefina era mais velha do que ele, havia sido amante de políticos influentes e, como filme mostra, teve amantes durante o casamento. Ele opta, no entanto, por um caminho fácil de encenar, com uma insistência quase constrangedora, um péssimo desempenho sexual de Bonaparte, provavelmente querendo opor ao seu lendário desempenho militar. Tudo acaba parecendo uma piada estereotipada entre homens ao invés de uma crítica bem-humorada e supostamente feminista, direcionada ao público atual, como a expressão entediada e insatisfeita da esposa parece querer indicar.

Ao fim, ao deixar de lado as questões da política interna, o filme perde um possível elo de ligação entre a cama e o campo de batalha, que daria à essa ficção histórica (e talvez ao seu protagonista) uma personalidade. As questões populacionais, que incluem quem, como e com qual frequência as pessoas de um determinado país se reproduzem, estão completamente interligadas com os debates sobre território, poder e soberania que estão por trás das baionetas e dos canhões. Afinal, como bem sabem as mulheres, as armas podem também ser outras. Mas essa, claro, é a mera opinião de alguém que enxerga o próprio tema de pesquisa em uma simples ida ao cinema.

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